quinta-feira, 19 de novembro de 2009
Quando comer não traz a felicidade
Primeiro, é bom esclarecer que nem todos os obesos mórbidos sofrem de compulsão alimentar. Muitos deles reconhecem a hiperfagia, comer em grandes quantidades, e também uma cultura alimentar prejudicial, com preferências por alimentos calóricos, sem reconhecerem, no entanto, a enorme tensão e desconexão psíquica que caracteriza o padrão alimentar compulsivo.
Como a obesidade mórbida é uma doença multifatorial, você pode ter chegado a ela sem um comportamento compulsivo, bastando ter associadas à genética desfavorável grandes quantidades de ingestas, sempre superiores ao que se gasta no cotidiano. Mesmo que a compulsão alimentar não esteja na partida deste ciclo, depois que a obesidade se instala, aí sim, torna-se um transtorno muito comum no padrão alimentar do obeso.
Cheguei a uma definição para compulsão que acho pedagógica e tem me ajudado a tratá-la.
- Continuar se dando algo que você já tem, para fazer frente às muitas faltas e necessidades, que você acredita que não possam ser atendidas.
O senso comum sugere que devemos tratar a compulsão dando-lhe limites, promovendo mais um não para aquele que na verdade precisa desesperadamente de um sim. As dietas para o obeso têm esta representação, promover um não na única porta pela qual se podia passar com algum prazer . Sem abrir novas portas, fica inviável fechar também esta por muito tempo.
Cheio de restrições, já não se pode correr, e tudo é mais difícil: amarrar sapatos, dividir o banco da condução, passar na roleta, comprar as roupas que gostaria, e a pessoa vive constrangimentos no seu cotidiano que incluem sua higiene pessoal cada vez mais difícil.
A malignidade da doença atinge todas as áreas da vida. Grande quantidade de energia que o obeso dispõe, está represada em um corpo pesado, doído e sem mobilidade. As portas parecem irremediavelmente fechadas.
Haja força de vontade para mais uma dieta! E seus esforços tendem a fracassar. Toda a força de vontade de emagrecer naufraga com os maus resultados, gerando tristeza ainda maior, que alimenta uma nova força: a da vontade de se compensar, através da comida, por tantos sacrifícios.
O ato alimentar, sob esta dinâmica, se torna aflito e ansioso, gerando uma culpa tão intensa que o levará ao ciclo vicioso: quanto mais como, mais engordo e me entristeço, me levando a comer mais, como compensação por tamanha tristeza.
A culpa alimentar engorda, porque define uma maneira de comer. Uma maneira meio envergonhada, portanto rápida e furtiva, como se estivesse cometendo grande transgressão. Com isso, a própria experiência de comer passa desapercebida, não deixando o lastro das vivências agradáveis, que saciam por mais tempo. Carente da experiência, a pessoa vai querer revivê-la logo a seguir, em intervalos cada vez menores.
Parecendo mesmo que estão se acumulando sucessivas situações de prazer, na verdade a pessoa se encontra em permanente conflito interno, e sob rigoroso julgamento negativo. Na mais absoluta crise do prazer, incluindo o prazer de comer, que dura cada vez menos tempo, substituído por culpas e arrependimentos.
Enquanto portas se fecham em diferentes áreas da vida, o apetite aumenta, junto com os limites do corpo, e o tamanho da tristeza. Neste momento a experiência da compulsão alimentar é mais comum do que parece, e pode chegar à condição de comportamento de risco e muito destrutivo, onde situações bizarras comprometem ainda mais sua autoimagem e estima.
É bom que você se perdoe por isso; a culpa aprisiona muita energia psíquica, e ela pode ser melhor aproveitada no projeto de emagrecimento. Perdoar-se por eventuais maus tratos com você mesmo, se responsabilizando pela forma mais delicada com que passa a se tratar é uma troca inteligente e muito eficaz para quem a realiza.
É comum o paciente se referir ao episódio compulsivo como um estar possuído, fora de si mesmo, como se estivesse em transe e sem qualquer discernimento. Vive o ataque à comida como se estivesse sendo atacado por ela. Estes episódios, principalmente noturnos, servem para impregnar cada vez mais de tensão o ato alimentar, e esta tensão estará presente na forma e na velocidade com que se alimenta.
Se fosse uma droga, a abstinência seria parte do tratamento.
Tratando-se do alimento, a metodologia não pode ser a mesma. O alimento é a principal fonte de vida, o combustível imprescindível para estarmos saudáveis e vibrantes. Não podemos ficar sem ele, portanto... estamos com problemas.
Neste momento é que a psicologia é convocada, colaborando com a reeducação alimentar. É preciso estar presente no ato de comer com uma auto-observação em que não se rejeita a experiência. Rejeitá-la é como jogar uma bola de borracha na parede – quando ela volta mais forte.
Qualificar a experiência alimentar com sua presença e plena atenção, é um grande antídoto para este transtorno. Não é uma tarefa tão árdua assim – afinal, quem não gosta de comer? Você poderá, com esta autorização, começar a desatar a relação entre comer e o sofrimento e a emocionalidade.
Mais presente, cultivando uma apreciação por este momento, se poderá enfim viver o prazer de nutrir-se. Mais presente, você poderá tratar-se com toda a delicadeza que sempre quis ser tratado, iniciando um novo ciclo virtuoso de responsabilidade por si mesmo.
Neste novo ciclo, deixa-se de ser refém da comida. Sua energia não precisa ficar aprisionada a ela, e esta energia liberada poderá dirigir-se para outras áreas da sua vida, tão imprescindíveis quanto é o ato de se alimentar. Afinal, nem só do pão vive o homem.
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Querido Dr. Arruda,
ResponderExcluirMuito obrigado por este texto.
Aquele abraço.
Admar
S E N S A C I O N A L ! ! !
ResponderExcluirNeste último artigo você se superou. Claro, lindo, preciso... impressionante a forma como descreve tudo que acontece.
Eu já ouvi tudo isso em nossas sessões... mas escrito fica mais forte... permanece.
Quando eu digo que tenho uma admiração enorme por você, não sei se entende todos os motivos dela. Sei que você sabe de si, sabe muito bem quem é e do que é capaz. Só não tenho absoluta certeza se sabe o quanto atinge cada um daqueles que encontram você pela vida. É uma delícia, Arruda. Sou grata por isso. Muito.
E a idéia do blog, sua forma de ajudar aos que não podem estar perto de você.... muito respeito por ela.
Imagina o que será, para aqueles que não podem ir a uma consulta, ler o que vc escreveu...
Enfim, tudo isso pra te dizer duas coisas:
1. Parabéns.
2. Você me emocionou.
Beijo,
Lygia
Realmente, a cada dia que passa me certifico de que a obesidade está na mente do obeso, lá dentro, escondida, esperando um momento de fraqueza do mesmo para atacar seu cerébro.
ResponderExcluirMente obesa = indivíduo obeso... FATO!!!
Sempre comi com prazer, satisfação, luxúria e tesão do momento de degustar... Talvez minha declaração venha até contra todo o corretíssimo escrito pelo Dr., mas eu me considero diferente neste aspécto.
Gosto de comer, de cozinhar, curto o momento de ambos, mas sempre pequei no momento em que comia com receio de que a comida acabasse, com receio de que não pudesse curtir o bom sabor, e assim me entupia... Quanta covardia com este corpo que sofreu por anos e nada fez para receber tamanha quantidade de informação adiposa...
Bom, sem querer plagiar sua amiga Lygia, deixo claro que vc, com muito conhecimento de causa, soube muito bem apresentar a todos como uma mente obesa pensa.
Parabéns e muito obrigado por estar fazendo parte da minha vida.
Suas palavras e suas ponderações tem sido de muita valia, me transformando num homem muito melhor comigo mesmo.
Forte abraço.
Léo.
Dr Arruda, li não só os textos recomendados, como todos os demais postados, inclusive com os valiosos comentários de pacientes/amigos. Muito obrigada à todos!
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